Charles Melman

Talvez possamos começar pondo três termos em equilíbrio: a crença, é claro, a descrença e também um outro termo que, em patologia, tem todo seu lugar, a certeza.

Como vocês sabem, a crença é um velho problema que, bizarramente, gira sempre em torno da mesma figura: crença de que haveria alguém que sabe. Alguém que sabe, capaz, portanto, ao mesmo tempo de nos guiar, de nos dizer o que nós temos que fazer. Se eu a apresento desse modo a vocês, é porque, vocês se lembram sem dúvida de suas aulas de latim, por exemplo, onde vocês traduziam as histórias concernentes aos adivinhos, onde vocês podiam ver que Julio Cesar ou outros generais, não menos consideráveis, não começavam, não travavam a batalha antes de terem consultado os adivinhos; e se os adivinhos dissessem, após terem observado o vôo dos pássaros ou dissecado um pobre animal para examinar o interior de seu organismo, não, hoje não, não é um dia favorável, pois bem, esse brilhante general adiava a batalha. Muito mais perto de nós, vocês puderam recentemente saber pela boca da interessada, a vidente consultada, que um de nossos brilhantes generais, para saber o que devia fazer, um de nossos brilhantes generais, eu evoco nosso último e falecido Presidente da República, pois bem, malgrado seu próprio saber político, malgrado o fato dele ter se apresentado principalmente como amante da racionalidade, mesmo se ele evocava nas suas conversas íntimas alguma força do além, pois bem, consultava, perdoem-me a comparação, como as cabeleireiras e os porteiros, consultava uma vidente. É muito impressionante. É evidente que, entre os dois, há esta crença, como diria?, subjetivamente, socialmente organizada já há muitos séculos e que é, certamente, a fé.
Vocês notarão, portanto, se fazemos essa espécie de rápido panorama de um ponto de vista fenomenológico que, a cada vez, essa crença pode se resumir no seguinte: a idéia, não a certeza, a idéia, a crença é um sentimento totalmente particular, ao mesmo tempo mais e menos que a certeza, de que há alguém, em algum lugar, que sabe.

O que é notável é que para chegar a uma definição tão simples e que, creio, é boa, quero dizer que ela se presta a múltiplos enriquecimentos, tenha sido necessária esta experiência que vocês sabem e que se chama psicanálise. Trata-se de lembrar que essa experiência não é outra coisa senão uma experiência de fala, experiência extremamente pura, onde aquele a quem se endereça essa fala se engaja numa neutralidade, até mesmo uma quase ausência, que poderia ser perfeita, em todo caso não se entrega a nenhum artifício, mas simplesmente então uma fala que se endereça… a quem? A questão é posta pelo que será a análise da transferência: a quem fala aquele que assim se exprime sem saber a quem fala? Seja lá como for, essa fala, no seu endereçamento, vai o mais freqüentemente concernir aquele que seria o suporte, em algum lugar, de um saber, seu próprio saber, que teria o saber sobre si mesmo. É o que nós chamamos comumente a transferência, com esses casos onde, como vocês sabem sem dúvida também, acontece que alguns pacientes são perfeitamente inaptos, não refratários, mas inaptos à transferência. Quero dizer que, para eles, esse fenômeno da crença não se produz. Aí, nós entramos já em um registro clínico; pois o outro aspecto clínico da questão é, por oposição, que acontece, não é raro, que o analisante se recusa a renunciar à dita crença, recusa-se a renunciar a essa idéia de que há aí um sujeito dispondo do saber que o anima, a ele, o paciente, que há aí alguém que sabe. Isso pode criar essas situações, com certeza, da análise prolongada ou também de ruptura com o analista sob a forma da decepção, o analista se vendo acusado da culpa de não ter respondido à expectativa do analisante e de não ter vindo vestir a roupa desse sujeito suposto ao saber. Eu queria então fazer vocês notarem como esse problema da crença se situa sobre um terreno que concerne à subjetividade de cada um, seja na sua vida privada ou na sua vida social, uma vez que grupos inteiros são organizados sobre a partilha de uma crença comum e que nós nos encontramos aí diante de uma questão que nós não saberíamos tratar com ligeireza, à qual convém tentar responder ao mesmo tempo com respeito, respeito à crença ou à fé de cada um e, ao mesmo tempo, permitir-lhe situar-se da melhor maneira nisso que é seu próprio questionamento.

Acontece que esse saber, do qual eu falava há um instante, é menos um saber cósmico do que, mais originalmente, esse saber que se encontra depositado em cada um, esse saber desconhecido de si mesmo e ao qual Freud deu o nome infeliz de inconsciente. Nome infeliz porque, como Lacan observou, é colocar o inconsciente como o reservatório de tudo o que é negativo, enquanto que o saber inconsciente se traduz por manifestações eminentemente positivas e não depende do que é, falando propriamente, o negativo. Em todo caso, há em cada um de nós esse saber operando aquém e além da racionalidade, da lógica, da ciência, das aquisições, da aprendizagem, da educação; o domínio desse saber vai bem longe, na medida em que ele não concerne somente a, digamos, nossa relação ao gozo, mas do mesmo modo ele pode também ser verificado como guiando nossas especulações metafísicas, lógicas, decidindo nossos engajamentos, dizendo de outro modo, esse saber inconsciente é seguramente, eu diria, o que resiste à educação e no que a educação não chega a penetrar.

Eu pude, como vocês, ser surpreendido por isso e eu me lembro de exemplos, mais para banais: uma amiga médica, e na preocupação de cuidar dos seus filhos, retomando procedimentos de mulheres simples, completamente em oposição com o que ela tinha podido devidamente aprender e que tinha sido verificado pelas provas, os concursos, etc., mas se comportando diante de seu filho como se ela não tivesse de modo algum esse saber adquirido, e eu diria cientificamente sólido, válido, mas diante de seu filho doente, lhe vinham as próprias maneiras de agir de sua mãe, e ela não o criticava em nada, aquilo lhe parecia totalmente natural, mesmo que se tratasse de gestos que, sem serem ofensivos, não eram no entanto muito inteligentes. Eu me lembro que naquela época isso tinha podido me surpreender, mas alguém como Lacan pôde, no fim de sua vida, dizer em seminário essa coisa surpreendente e que me abalou quando eu a ouvi: “Eu consegui me virar na minha prática com meu restinho de inconsciente”. Quando se é aluno, espera-se evidentemente que o mestre lhe diga que conseguiu se virar na sua prática graças a todas as elaborações ou construções, as reflexões e eis o mestre que diz a vocês: “Eu consegui me virar na minha prática com meu restinho de inconsciente”, parecendo com isso avaliar que, em última análise, o mestre do jogo de toda essa atividade que era a sua, era seu inconsciente, quer dizer esse saber, ignorado por nós mesmos e que nos guia.
Acontece, e isso é um passo muito importante a considerar, que nós não deixamos de atribuir um sujeito a esse saber, quer dizer que nós não pensamos que é um saber anônimo, ou uma escritura, organizada em um texto enigmático. Nós não deixamos de atribuir-lhe um sujeito, quer dizer que esse saber, para nós, se presta à suposição de que existe um sujeito que tem sua mestria, e é esse sujeito que Lacan chamará o sujeito suposto ao saber, suporte da transferência e suporte dessa crença e desse amor que serão também aqueles da fé. Há aí alguém, “há alguém” que sabe e que me guia no que eu tenho que fazer, na minha conduta, nos meus propósitos.

Este “há alguém” existe, não por algum fenômeno alucinatório, mas por razões de estrutura – eu as evoco muito rapidamente – que dizem respeito ao que a prática inevitável do recalcamento faz: para nós, no real, há sempre significante, há ao menos um significante, ao menos um. Este ao menos um, Freud o chamou Urverdrangung, o recalcamento original, originário, há aí ao menos um e, diz Freud, como se ele viesse chamar os outros recalcamentos. Nós vivemos com essa idéia de que o real para nós não é vazio, mas é habitado por ao menos um, algum um, alguém de quem nós não conhecemos o rosto, alguém que não nos fala, mesmo se nós o interpelamos, se nós o interrogamos, mesmo se nós dialogamos internamente com ele. Na rua, vocês vêem pessoas que falam desse modo com, manifestamente, alguém que as habita, eles estão lá, eles falam; há esse famoso diálogo interior que é em geral unilateral, salvo quando as respostas se fazem sob a forma do tu injuntivo; nós nos reenviamos “tus”, “tu deverias fazer isso, meu caro”, o meu caro sendo o próprio locutor, quer dizer que imaginamos o diálogo que viria daquele que sabe.

Esta crença é, portanto, eu direi, fundada de modo bastante válido por razões de estrutura e faz com que para nós, no real, há alguém. E é nossa relação com essa presença, com esse alguém, que vai eminentemente guiar o desenvolvimento ou a organização das neuroses.

A esse respeito, nós podemos entrar aí no que nos concerne mais diretamente, isto é, o campo da clínica. Enquanto neuróticos, nós estamos eminentemente engajados na relação, não somente com essa crença, mas na relação com esse alguém, e a relação com esse alguém pode predominar sobre a relação com outrem; quero dizer que nós podemos agir, fazer coisas, ter condutas, tomar decisões, simplesmente, por exemplo, para agradar a esse alguém ou para desafiar esse alguém, ou ainda para nos engajar numa espécie de ordálio, para obrigar esse alguém a responder. Na relação terapêutica, não é raro que um paciente, por exemplo, com esse analista que desejaria ficar em seu silêncio, se ponha numa situação perigosa o bastante para que o analista seja obrigado a não ficar assim, sem se mexer.

Nas neuroses, esse alguém, esse sujeito suposto ao saber, esse suporte da crença está na origem de uma economia, de uma dinâmica que pode se mostrar perfeitamente essencial. Tomemos exemplos precisos. Comecemos por aquele cuja crença está em geral em primeiro plano, o obsessivo, o neurótico obsessivo, e tomemos o caso princeps de Freud, “o homem dos ratos”: vocês sabem de que modo a relação do homem dos ratos com a figura de Deus, assim como a de seu pai morto, será determinante e como essa presença de seu pai morto o acompanha, o segue. Ele continua a ter com esse pai, ainda que morto, relações, conversas, ele até se instala, trabalha na sua casa em sua mesa, pois bem, ele espera que esse pai entre, ou então, quando ele ouve uma boa história, ele se diz: “Taí, essa eu vou contá-la a papai porque realmente isso vai fazê-lo rir bastante” e quando ele é bem sucedido em suas provas, é claro, “papai vai ficar contente”.

Eu evoco isso para mostrar a vocês como nós estamos sobre um terreno familiar (podemos qualificá-lo de patológico? Ou como fazendo parte de nossa vida cotidiana?). Eu não penso que esse tipo de manifestações nos surpreenda particularmente nem nos pareça em ruptura com o que é, afinal de contas, um funcionamento, o funcionamento mental ordinário.

A relação do homem dos ratos com Freud é igualmente interessante, no que é sua expressão transferencial. Freud exibe diante dele todo o seu saber e em particular sobre o Édipo, quero dizer que ele o persegue com interpretações edipianas e não o deixa descansar e aí, num certo momento, o homem dos ratos chega e diz: “Eis aí, eu sonhei, eu via sobre um mapa três letras, WŁK” e Freud fica um pouco embaraçado, WŁK, com uma barra diagonal sobre o L como se pratica na língua polonesa, isso deve então ser um mapa geográfico da Polônia, e Freud se apressa imediatamente para tentar dar corpo a essas três letras, o que isso quer dizer, essas três letras? E o homem dos ratos acolhe as interpretações de Freud como uma espécie de gentileza divertida, ele fica muito contente que Freud se esfole por ele, para dar a ele o sentido de tudo isso, verdadeiramente isso lhe agrada muito, e é ao constatar o caráter, como eu diria?, excessivo das interpretações de Freud – o que podem querer dizer essas letras WŁK, Freud finalmente não sabe nada disso ou pode se enganar – que o homem dos ratos vai se curar, quer dizer vai poder por um termo à sua análise, parar, deixar sua análise em condições que são mais para boas em relação a seus sintomas, quer dizer, ao constatar que aquele que ele tinha investido da carga do sujeito suposto saber era capaz de se enganar procurando sentido onde só havia a letra. O problema resta inteiro: o homem dos ratos constata que não há mais sujeito suposto ao saber ou, simplesmente, que foi indevidamente que ele tinha investido Freud dessa carga? Em todo o caso, ele deixa Freud em bons termos, ele fica muito alegre quando constata que Freud é capaz de dizer qualquer coisa, como ele faz naquele momento, um qualquer coisa erudito, mas ainda assim um qualquer coisa; ele fica alegre, bem, e é aí que o tratamento se interrompe para ele.

O caso da histeria é ainda mais interessante, porque a histérica está persuadida, como o fóbico, aliás, de que há um sujeito suposto ao saber e que o único problema é encontrar o endereço certo, que esse endereço seja aquele que um amigo ou uma amiga lhe dará dizendo: “Vai consultar o professor tal porque ele é realmente formidável, você verá, um cara bom”, ou que o endereço consista no modo como sua fala será orientada e virá visar àquele que deve existir. Ela ou ele estão persuadidos de que, se ela ou ele se encontram em posição perigosa, Ele virá estender uma mão segura e salvadora. Muitas condutas histéricas, algumas graves como eu o evocava há pouco, devem ser consideradas como postas em movimento por essa preocupação de fazer se manifestar esse sujeito mestre do saber; ainda que, por uma inversão singular, a histérica possa também ter o sentimento de que aquele que está assim atribuído do saber, pois bem, ele não sabe tudo e que é ela que tem o tanto de saber que falta a ele e, em geral, ela não pede mais do que oferecê-lo a ele, quer dizer, se oferecer como campo de experiência, se me permito essa imagem, de abrir para ele suas entranhas, seu corpo, para que ele possa enfim saber, ela doa seu corpo à ciência. As doentes de Charcot eram mulheres que doavam seus corpos ao professor para que, enfim, ele pudesse tudo saber.

Em todo caso, esse apego da posição histérica a este sujeito suposto ao saber até o ponto onde, eu o digo bem, a histérica em última análise pensará que finalmente… Há aí uma oscilação que pode parecer contraditória, mas que, de fato, é dialética, tão bem ilustrada nos romances ou nos filmes pela posição da mulher do professor: o professor tem um grande saber, mas ainda assim, para saber levar a casa satisfatoriamente, sua mulher está lá. Mesmo se o que seduziu a moça era o saber do professor, essa inversão fará com que seja o saber dela que, ao final de um tempo, poderá se revelar dominante e determinante. Há aí uma relação tradicional entre o senhor e o escravo, já muito bem percebida em Hegel, com o fato de que o saber do escravo poderá muito bem vir a se impor ao próprio senhor. Como vocês sabem, o tema é explorado nos filmes, de um modo em que a dignidade do mordomo, seu saber viver, etc., vem se impor ao senhor que, ele, teria um pouco a tendência de querer relaxar, de esquecer as boas maneiras, o mordomo estando aí para restabelecer a correção das condutas.

Se posso mencionar os casos dos quais eu mesmo tive que me ocupar, eu diria que o fóbico não tem senão uma só idéia, a de que existe em algum lugar o bom professor. Ele está talvez na China, ele está talvez nos Estados Unidos, onde vocês quiserem, nos confins de um departamento francês sob a forma de um curandeiro, mas “há alguém” que sabe e o fóbico tenderá a querer se proteger da transferência por uma espécie de dispersão dos investimentos sobre aqueles que sabem. Quero dizer que o fóbico pode temer o que seria um investimento sobre uma figura: eu tive vários exemplos de pessoas inteligentes, também neste caso cultas, mas que para tratar uma doença eram capazes de se dirigir aos personagens mais inverossímeis, aos curandeiros, aos manipuladores diversos, osteopatas, etc., os mais incríveis, mas a partir dessa certeza de que “há um”, em algum lugar, que tinha a chave dos seus problemas; disso, eles não duvidavam.

A posição do paranóico, que é muito bem evocada no texto de Josiane Quilichini, tal como eu o pude ler, é que justamente ele, ele não acredita. É importante e interessante para nós porque, a partir do momento em que ele não crê, ele está certo de que sua relação, a relação com o outro, é forçosamente organizada por uma insuficiência, uma falha – uma relação forçosamente organizada por uma falha, por mais terna que seja a relação – e bem, essa falha, ele vai evidentemente considerá-la como um prejuízo, um dolo, ou como um roubo; e é assim, por exemplo, que muito espontaneamente ele virá a pensar que, se há uma falha na relação com sua querida esposa (porque não pode ser de outro modo em qualquer relação), é que sua querida esposa dá a um outro o que se encontraria a ele recusado. O delírio de ciúme está aí muito próximo e também o delírio de reivindicação, uma vez que, pelo fato de recusar todo sujeito suposto ao saber, ele fica persuadido de que escondem dele alguma coisa visto que ninguém chega a saber tudo; se ele não sabe tudo, é que escondem alguma coisa dele, que roubam dele, esse saber.

Portanto, é estranho que nós passemos dessas figuras da crença às da descrença paranóica, que não resume todas as descrenças, é claro, mas em todo caso um dos efeitos da incredulidade, – não é alguém que é crédulo, o paranóico, é justamente a isso que ele se recusa, ninguém vai enganá-lo –, enfim, é essa figura do paranóico.

A outra figura que nos falta considerar é a do perverso que, contrariamente ao que poderíamos imaginar, tem necessidade de acreditar. A figura da crença não é absolutamente antinômica à da perversão, paradoxalmente é bem preciso dizê-lo, ao contrário. Por quê? Pois bem, porque se aquilo a que o perverso visa para se satisfazer é um objeto interdito, o objeto que não se deve, o objeto ao qual ele é solicitado a renunciar, se é a isso que o perverso visa, para que esse objeto tenha para ele um preço, um valor erótico, é preciso que ele imagine que haja alguém que nos priva desse objeto e que, portanto, desse objeto aí, goza. Esse objeto é causa de gozo para aquele que nos privaria dele. Dito de outro modo, no seu exercício perverso ele vem lhe roubar um objeto que seria a Ele reservado. O perverso não é absolutamente alguém que possa se satisfazer com a descrença. A obra de Sade é sem cessar um desafio, o desafio em relação a, em relação à figura de Deus; ele precisa sem parar dessa figura e, viesse ela a se apagar para ele, sua prática não teria mais sentido nem interesse.

Resta neste rápido percurso uma última figura essencial que é a do psicótico. O psicótico não crê uma vez que ele tem a certeza. Ele sabe que há a chave para ele, no real, há alguém, ele o sabe, seja porque ele tenha testemunhos alucinatórios disso, seja simplesmente porque ele sabe que é assim. Ele sabe que há aí alguém que lhe prega peças, que lhe faz gracejos, que o comanda, que o persegue, o que vocês quiserem. Com ele nós estamos, portanto, num campo que não é mais dialetizável, uma vez que é aquele da certeza. Quando alguém está habitado pela certeza, não é mais possível falar disso com ele, já que a certeza exclui a dialética, quer dizer, a colocação em discussão.

Lacan terá a esse respeito uma fórmula bastante fina e muito feliz, ele dirá que, nesta instância, neste alguém no real, “o neurótico crê nisso, enquanto o psicótico o crê”. O neurótico crê nisso, quer dizer que aí se trata de uma instância que se encontra alojada no real, enquanto que para o psicótico, essa instância vem na realidade e a relação a uma instância que está na realidade é uma relação direta, complemento de objeto direto, e não mais indireto; ele o crê porque ele está aí.

Nós poderíamos retomar agora, totalmente de outro modo, essa questão e de um modo talvez a meu gosto, em todo caso, mais interessante.

Como vocês sabem, nossa relação com a realidade é organizada pela experiência de uma perda, de uma perda do objeto que Lacan chama o objeto pequeno a. Dito de outro modo, é preciso renunciar ao objeto para se haver com uma realidade feita de semblants, semblants do objeto perdido.

Esta perda não é, entretanto, menos significativa de um dom, uma vez que aquilo que eu tenho de volta, em troca, é um acesso à realidade e um acesso ao gozo sexual. Isso quer dizer que essa perda pode muito bem ser considerada como um sinal da graça que me foi dada.

Nessa troca, essa troca primordial que se faz assim com o que Lacan chama o grande Outro, há, portanto, um ato de fé, quer dizer que eu confio, eu me fio nessa instância, uma vez que eu cedo a ela esse objeto que poderia ser, na chamada economia, o objeto de um gozo superior; em retorno dessa fé que eu concedo à referida instância, eu terei o que eu mereço, isto é, o acesso ao mundo, o acesso ao gozo, o acesso à vida, é preciso dizê-lo, essa espera que muito freqüentemente domina as existências, essa espécie de esperança, formulada ou não, de que eu acabarei certamente sendo recompensado, de que isso acabará certamente por voltar. Há aí nesse tipo de economia que é a nossa, efetivamente uma espécie de confiança, de fé, de crédito – o crédito não é separável da fé – feito ao Outro: ele não me roubará, eu não serei roubado. Vocês sabem o quanto o sentimento de ser roubado, ou o medo de ser roubado ou a suspeita de ser roubado, etc., é algo que marca tão facilmente as trocas ordinárias com o semelhante, o fato de que fomos mesmo “ludibriados”; a gente pensava confiar nele, a gente se fiava nele, ele tinha assim uma cara boa, “pronto”, eis aí, ele bem nos enganou. Com os tipos de conseqüências emotivas ou reacionais que podem ultrapassar em muito a importância do prejuízo.

Essa observação vale para assinalar a vocês, aí também, o quanto uma grande parte de nossa economia subjetiva, contrariamente àquilo que podem tentar estabelecer as abordagens de tipo behaviorista ou comportamentalista ou cognitivista etc., não se endereça ao mundo, mas a uma instância que não está aí figurada em lugar nenhum e que, entretanto, pode absorver uma parte essencial da energia psíquica, com relações estabelecidas que podem ser determinantes. Eis porque essas abordagens, behavioristas ou outras, são de saída afetadas, se posso dizer assim, por um vício inicial, porque o que pode nos importar mais no mundo não é necessariamente a própria representação do mundo.

Convém, portanto, evocar a economia da relação com essa instância, com quem se faz a troca, e vocês vêem como as patologias mentais são, se posso dizer assim, dispostas em torno dos problemas desta economia. O obsessivo, isso salta aos olhos, o que o Outro lhe pede ele não quer ceder, se Ele o quer é porque é extremamente precioso, ele prefere guardá-lo para si. Não vou contar a vocês histórias de obsessivos cujo pequeno apartamento é literalmente invadido pelos sacos de lixo que ele é incapaz de ir jogar fora. É uma caricatura, mas que se vê. Não há possibilidade de ele renunciar à mínima coisa que seria para jogar fora, que desapareceria, não a veríamos mais, não poderíamos mais fazê-la reaparecer, não é suportável. A economia do obsessivo não é organizada por alguma relação social, ela é organizada inteiramente por sua relação com essa instância que eu evocava.

A histérica é diferente, uma vez que ela pensa, afirma, que a referida instância deu a ela tudo o que era preciso, mas que é na relação com outrem que ela foi ferida, privada, traumatizada. Os semelhantes a prejudicaram, mas ela tem confiança no Outro: se ela se viu lesada não é pelo fato dessa instância no Outro.

O paranóico não tem essa confiança atribuída a essa instância no Outro, nem o mínimo crédito, pois bem, ele é reduzido a registrar os déficits da vida cotidiana comum como as provas das extorsões das quais ele é a vítima e, ao mesmo tempo, daquilo que se deve a ele a título de reparação. Isso é construído de maneira extremamente lógica.

Então, que atitude o analista tomará em face da crença? Se me permito dizê-lo de novo, seguindo Freud, mas sobretudo Lacan – poderemos falar, se vocês querem, do lado anti-religioso de Freud, mas nos atenhamos nesse momento a Lacan – é evidente que o analista não tem que ser o diretor de consciência ou de inconsciência, não é?, haveria de um lado diretores de consciência e do outro lado diretores de inconsciência. O psicanalista não é um diretor de inconsciência, ele não tem que vir de modo algum decidir as crenças ou a fé de seu analisante. É desse último que dependem as opções que ele tem, que ele quer tomar, que ele pode tomar sobre a questão. Em compensação, no processo do tratamento há esta passagem delicada que consiste em fazer com que o encontro com a falha de saber – como aquela, por exemplo, num dado momento, do homem dos ratos – não tenha por conclusão banal o fato de que simplesmente o analisante não bateu na porta certa e que se ele tivesse se dirigido a um analista mais conhecido ou de uma outra escola, etc., esse analista teria podido, não é?, lhe garantir um saber, um saber realizado. Porque o próprio deste saber inconsciente, que é tão potente, é que ele ignora uma quantidade enorme de coisas e, em particular, ele ignora completamente isso que o causou, a saber, a castração. O saber inconsciente não sabe nada da castração e é por isso que sua tendência é sempre de ir no sentido do incesto; quero dizer que os pensamentos inconscientes, os sonhos inconscientes irão para este lado, mesmo se uma espécie de vigilância daquele que dorme faça com que ele possa acordar no momento em que a situação se torna um pouco escabrosa demais… Mas essa vigilância não é exercida desde o inconsciente. Por outro lado, é evidente que este inconsciente não tem fundamentalmente outro saber senão o de ser aquele do gozo, e é pelo fato de que ele é saber do gozo que ele se apresenta como saber organizador do mundo. Há na abordagem científica um efeito, pois não se deve pensar que os cientistas estão ao abrigo desses fenômenos, bem ao contrário, quando um cientista faz uma descoberta ele está persuadido de que ela já estava lá, inscrita no mundo, que ele só fez decifrar o grande livro do mundo; ele não tem absolutamente a idéia de que veio escrever uma seqüência que até então era desconhecida de cada um, que é ele o inventor, o criador da referida seqüência. Não, ele vai pensar que já estava lá e que ele só fez decifrar o texto. O cientista é, ele mesmo é claro, o sujeito desta crença de que há um saber que organiza nosso mundo e que vela por ele, que vem finalmente regularizar, sei lá, as chuvas, as secas, os ventos, as marés, o que vocês quiserem, dizendo de outro modo, que há alguma potência que vela por todo esse equilíbrio, que há aí um que sabe. O cientista não está menos exposto a esse tipo de disposição, que ele o diga ou que ele não o diga, mas freqüentemente ele o diz.

Isso quer dizer que a maior racionalidade, como vocês sabem, aliás, não põe de modo algum o cientista ao abrigo de testemunhar sua fé e suas crenças, e não é absolutamente contraditório, eu acrescentaria devidamente, uma vez que eu trago para vocês fenômenos racionais, eu não estou falando da crença como um fenômeno sobrenatural, mas da crença como racionalmente construída e organizada, quer dizer como um efeito de estrutura.

O que diz igualmente a estrutura, é evidentemente que a suposição desse sujeito que nós atribuímos ao saber, esse sujeito suposto ao saber, pois bem, está ligada a esse acidente que se chama o recalcamento; e que, por outro lado, este dispositivo é interno ao que é preciso mesmo chamar a fisiopatologia mental. Até aqui eu só evoquei a crença em suas expressões, se eu posso dizer, patológicas, mas eu deveria ter dito fisiopatológicas porque acontece que nossa fisiologia mental é também uma fisiopatologia. Há alguns meses numa discussão com um honorável representante do CNRS que descrevia o funcionamento psíquico em termos comportamentalistas, eu fiz notar que o que podia fazer objeção a essa abordagem era que o funcionamento mental se apresenta, em nós, no humano, e é isso que nos especifica no reino animal, se apresenta regido por uma falha. É na medida em que alguma coisa não funciona que nós podemos começar a existir, a desejar, a pensar, a querer, a nos mover, a falar e se essa falha não é colocada, como o testemunha a psicose, tanto infantil quanto a do adulto, pois bem, nós ficamos no estado de legume. Portanto, há uma impossibilidade de pensar, de conceber o funcionamento psíquico, sem dizer que é em seu princípio um disfuncionamento, e que esse disfuncionamento é o preço de nosso acesso à existência. É preciso ser disfuncional para começar a existir.

Eu me encontrava quinta-feira em Nancy para um colóquio consagrado à histeria e uma homenagem prestada a Lucien Israel. Eu me permiti fazer observar aos colegas presentes que não era preciso ir buscar a histeria nas suas manifestações extravagantes, seus excessos, seu tumulto, as somatizações, tudo o que vocês quiserem, que a histeria, muito mais essencialmente e de modo muito mais matricial, é a expressão, mas que nós recusamos a reconhecer como tal, da insatisfação própria ao sujeito, na medida em que esse sujeito está entregue à existência. Na medida em que um sujeito existe, pois bem, ele não existe senão enquanto insatisfeito, é a insatisfação que é o preço de sua existência. O que quer dizer também que ele velará por mantê-la, essa insatisfação, livre, bem entendido, em certos casos, para se queixar disso, até mesmo ruidosamente. O que nós nos recusamos a reconhecer nas expressões do histérico é, de início, a insatisfação própria a toda existência, a nossa, a de vocês. Portanto, não tratar a histeria como alguma coisa a se rejeitar nas zonas, eu diria distantes, da patologia. Primeiro reconhecer aí, para cada um, sua própria condição, salvo que, se somos pessoas bem educadas, se não temos razões que nos impelem, nos incomodam, a boa educação e a gentileza querem que calemos essa insatisfação, e que não nos expressemos em seu nome, pois é muito inconveniente, injurioso, indelicado, tanto para os que nos rodeiam, para a família, para os pais ou para o cônjuge, para quem vocês quiserem, para os médicos também, que fazem o que podem, etc. E também, principalmente, é vir mostrar um escândalo próprio à existência, logo é uma ofensa, pois a polidez quer, pelo contrário, que nós testemunhemos que “tudo bem”. Quando você encontra alguém que, à sua pergunta bem gentil, responde sistematicamente: “não, tá tudo mal”, depois de um tempo você tende a evitá-lo; socialmente, salvo em alguns lugares, a resposta não é realmente admitida… Reter esse fato de que essa existência está então fundada sobre o princípio de uma insatisfação, insatisfação fundadora, mas que suporá sempre essa esperança, essa confiança, esse crédito depositado nesse alguém, que sabe e que acabará possivelmente nos devolvendo o que nossos méritos podem nos valer. A passagem à filiação paterna significa que nós nos entregamos a uma confiança, que não nos fiamos no que vemos com nossos próprios olhos, mas nos entregamos a um crédito que se atribui a essa instância no Outro: que há um pai a quem, portanto, e a seus representantes, podemos dar crédito.

A época que nós conhecemos é talvez rude, mas certamente interessante, pois ela se move. Vemos como as disposições tradicionais estão abaladas. Por quê? Pelos progressos da ciência, com as conseqüências éticas dos ditos progressos que vêm perturbar um certo número de domínios até aqui decididos por regras éticas que as novas possibilidades nos levam a reavaliar.

Ao mesmo tempo em que vemos esses progressos de uma ciência que parece ter se tornado inteiramente uma ciência de conforto – assim como há medicamentos de conforto e que são desejadas leis, legislações de conforto, por exemplo, os transexuais pedem uma mudança de sexo; seria preciso uma legislação que seja de conforto pois, por que um transexual se veria privado do direito de fazer reconhecer legalmente seu sexo, em nome de quê? – vemos, ao mesmo tempo, mas de maneira muito dispersa, constituírem-se o que chamamos de seitas, quer dizer, pessoas que se juntam e renunciam a qualquer conforto num movimento sacrificial para uma figura X às vezes bizarra, construída de qualquer jeito, de modo extremamente demagógico, ou bastardo, pouco importa. Vemos muito bem evoluírem essas duas correntes, que têm evidentemente uma relação entre elas. Não sei como vocês funcionam, aqui; parece que é preciso entrar na Internet eu não sei se vocês já entraram aí, se vocês estão conectados à Internet, parece que se a gente não faz isso, a gente se torna meio careta, não está nada por dentro. O que é essa história de Internet? É a fantasia, mas realizada, de que todo o saber do mundo está à sua disposição. Você pode ter acesso a tudo, é muito melhor do que a Grande Biblioteca. Lá você tem uma tela pequena e depois, toc toc e você pode, realmente, vir aí se inscrever, você mesmo com suas próprias coisas, fazer seu próprio site, não é?, você vem tomar lugar com seu saber, aconselho vocês se já não o fizeram, a procurar o que os grupos de psicanalistas puseram na Internet, isso interessará a vocês, certamente, como documento, dêem uma olhada. Esse saber na Internet supõe múltiplas vozes, mas nenhum autor. Quero dizer que Internet, isso funciona sem nenhum Deus, sem nenhum responsável, sem nenhuma figura que viria de alguma maneira sustentar a idéia dessa massa de saber. E também, ao mesmo tempo, na Internet vocês poderão ter acesso a essas seitas que ao mesmo tempo se fabricam, dirão a vocês que o verdadeiro saber está com elas. Dizendo de outro modo, manifestações de crenças como vindo responder a essa espécie de desvalorização maciça do saber que a Internet representa.

Freud tinha visto que o pivô de nossa patologia é esse fenômeno da crença. Pois é também essa crença que, de alguma maneira, consegue justificar nossa insatisfação, até mesmo fazer de nossa insatisfação, quer dizer, do masoquismo, o modo normal da existência. É dizer essa insatisfação como sendo nossa maneira de estar no mundo e, portanto, fazer do masoquismo e da depressão os traços que nos caracterizam. E o que explica o caráter anti-religioso de Freud não é outra coisa senão esse fato que culminou no seu último trabalho; um trabalho incrível, que ele publicou em circunstâncias incríveis, em 1939, Moisés e o monoteísmo, que continua suscitando incompreensões absolutas, sendo que ele é uma tentativa desesperada de fazer a análise das paixões que estão devorando a Europa, as paixões nacionalistas. E tentando mostrar que nossos ideais, os ideais são empuxo-ao-crime; há aí um fenômeno sobre o qual conviria refletir; saber por que, em nome do que há de melhor em nós, e em nome dos sacrifícios para os quais estamos prontos, por amor à instância paterna, poderemos nos transformar em criminosos. E não são os acontecimentos que houve recentemente na Europa, quero dizer no centro da Europa com a Iugoslávia, que podem desmentir o fato. O que há de melhor, a honra, a dignidade, a coragem, o amor da pátria, a defesa da família, a defesa de seus filhos, a aptidão ao sacrifício, os melhores traços são passíveis de transformar pessoas simples em criminosos. Eis aí, é o que Freud tenta dar a entender, e é preciso crer que somos apaixonados demais por essa instância suposta ao saber, figura paterna eventual, para sermos capazes de ler este último livro de Freud.

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Conferência feita em Reims em 1997. Publicado originalmente no Bulletin da Association freudienne internationale no 84, setembro de 1999. Tradução de Fernando Tenório. Revisão de Sérgio Rezende.